Transformar lixo em
riqueza depende primeiro do fabricante
por Ricardo Abramovay*
O principal instrumento que permitiu aos países desenvolvidos ampliar de
maneira significativa a reciclagem de resíduos sólidos, desde o início do
milênio, é a responsabilidade ampliada do produtor (Extended Producer
Responsibility, na expressão em inglês). Relatório recém-publicado pela agência ambiental
europeia mostra que a quantidade de lixo incinerada ou mandada para aterros
reduziu e que a reciclagem, no continente, passou de 23% a 35% dos resíduos,
entre 2001 e 2010, um aumento muito considerável.
Mais que isso: a Alemanha vem conseguindo descasar a produção de riqueza
da geração de lixo. Relatório do Bifa Environmental
Institute mostra que, entre 2000 e 2008 (portanto, antes da crise), o PIB,
em termos reais, cresceu quase dez por cento, e o volume de lixo caiu nada
menos que 15%. A intensidade em lixo da vida econômica, medida decisiva para
avaliar a qualidade da relação que uma sociedade mantém com seus recursos
ecossistêmicos, declina mais de 22%.
Maior riqueza e menos lixo: como isso é possível?
A responsabilidade ampliada do produtor ajuda a responder essa pergunta.
O conceito, que hoje se encontra no âmago das políticas europeias e é adotado
também em vários Estados norte-americanos, foi usado pela primeira vez em 1990
pelo pesquisador Thomas Lindhqvist num relatório para o Ministério do Meio
Ambiente da Suécia. Vale a pena citar sua própria definição: “A
responsabilidade ampliada do produtor é uma estratégia de proteção ambiental
para alcançar o objetivo de reduzir o impacto ambiental de um produto tornando
seu fabricante responsável pelo conjunto do ciclo de vida do produto e,
especialmente, por sua coleta, sua reciclagem e sua disposição final”.
É claro que, para que isso ocorra, o consumidor tem que fazer uma
separação correta, os comerciantes devem possuir dispositivos onde alguns
resíduos serão colocados, e o governo precisa organizar a coleta nos
domicílios. Mas é ilusão imaginar que o avanço europeu recente na redução do
lixo e na elevação da taxa de reciclagem seja apenas devido ao nível
educacional da população e à eficiência das prefeituras.
O fundamental, e que em última análise responde pelos bons resultados
europeus, é a responsabilidade do fabricante pelo conjunto do ciclo de vida do
produto. No caso francês, por exemplo, já existem 19 cadeias produtivas em que
vigora um ecoimposto que contribui para financiar os sistemas municipais de
coleta e reciclagem. Quem produz o detrito paga antecipadamente (e cobra de seu
consumidor, é claro) por dar-lhe a destinação correta. Acaba de ser aprovada
uma lei segundo a qual quem compra uma cadeira paga 0,20 euros por sua reciclagem
futura e 4 euros para que um colchão não acabe na rua ou num rio. É uma prática
contrária à que marcou o crescimento econômico do século 20.
Na prática corrente até aqui, a vida econômica se organiza de maneira
linear, a partir do procedimento “pega-produz-consome-joga”. Os produtos vão do
berço à sepultura e, para fazer novos produtos, recorre-se novamente a
matérias-primas virgens, que alimentam processos produtivos, cujos resultados
são consumidos e, em seguida, jogados fora. O problema é que não existe esse
“fora”.
A escassez e o encarecimento das matérias-primas, as possibilidades cada
vez mais limitadas de encontrar espaços para aterros e os custos exorbitantes
da incineração abrem caminho a que os agentes econômicos passem a tratar como
fonte de riqueza os materiais até então destinados ao lixo. Relatório recente
da Fundação Macarthur fala em
economia circular, em oposição à economia linear do “pega-produz-consome-joga”:
a economia circular é aquela em que parte crescente dos resíduos é usada como
insumo na fabricação de novos produtos.
Numa economia circular, a própria concepção do produto, seu design, já
incorpora e amplia as possibilidades de recuperação e reutilização dos
materiais nele contidos. Isso revoluciona, por exemplo, a maneira como são
fabricados bens eletrônicos, cujas ligas devem prever recuperação e manuseio
fácil, sem o que o destino de materiais, muitas vezes raros e preciosos,
acabará sendo o lixo e, pior, o lixo tóxico, já que a separação dos componentes
é muito difícil. Existindo responsabilidade ampliada do produtor, o fabricante
exigirá de seus engenheiros um produto que, contrariamente ao que ocorre hoje,
facilite o trabalho da reciclagem e, preferencialmente, o reuso da maior parte
daquilo que o integra.
O trabalho da Fundação Macarthur mostra que, na Grã-Bretanha, a
substituição de garrafas descartáveis de cerveja pela velha prática do depósito
de vasilhame permitiria, por exemplo, a redução de 20% do custo total do
produto. Onze Estados norte-americanos já adotaram leis que obrigam a volta
dessa prática. O consumo de cerveja “one-way”, por exemplo, pode ser mais
confortável, mas, se o seu custo real estiver incorporado ao produto, caberá ao
consumidor saber se deseja, de fato, pagar por ele.
São exemplos importantes e que oferecem lições valiosas, neste momento
em que, no Brasil, se estabelecem os acordos setoriais que vão dar vida para a
nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos. Acabar com os lixões, melhorar a
situação dos catadores e ampliar seu papel no interior da política são
objetivos decisivos. Mas a capacidade de a PNRS diminuir a produção de lixo e
ampliar a reciclagem depende, antes de tudo, de mecanismos que estimulem os fabricantes
a usar menos materiais, menos energia e propiciar à sociedade maiores
oportunidades de transformar lixo em riqueza. É fundamental então que fique
claramente esclarecida sua responsabilidade pelos resíduos ligados aos produtos
que colocam no mercado.
* Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e do
IRI-USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor deMuito Além da Economia
Verde, lançado na Rio+20 pela Editora Planeta Sustentável.
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